Junho 21, 2008
Mouro da Linha
Quando iniciares a tua viagem para Ítaca
Reza para que o caminho seja longo
(...)
Para que sejam muitas as manhãs de Verão
Em que entres em portos que nunca viste
Constantin Cafavy
Já há tempos que não tenho nenhuma tarefa absorvente que me impeça de aqui vir, nem sequer estive seleccionado na Suíça a jogar a trinco ou a fazer assistências. Há muito que não venho aqui apenas porque não me tem apetecido dizer nada. O mundo está mais chato do que propriament perigoso, a actualidade é um tédio, e já nem sequer existe Ribau Esteves, que tinha o mérito de ser irritante. O Governo dissolve-se em petróleo caro e a Oposição vai a Londres ver os netos, coisinhas fofas, riquezas da avó. O peito ilustre lusitano come três bolas de Berlim e cala-se por mais dois anos. Obama nas alturas será paz na terra aos homens de boa vontade? Que vivamos tempos interessantes, amaldiçoariam os chineses. Não, vendo bem, agora que disse umas coisas giras posso confessar, que já não soa tão mal: o que me tem faltado não é tanto assunto, é mais pachorra. Ando mais virado para revisitar o mundo que para falar dele. O tempo torna-nos cada vez mais contemplativos, e para tudo o que se vai perdendo com ele há remédio – menos para a inocência.
Revisitar o mundo pode ser, por exemplo, ir a Granada ver o Alhambra, e pelo caminho atravessar os mil arcos da mesquita de Córdova e os mil montes do al-Andalus. Desde logo, nenhum português poderá perceber onde está e o que é sem fazer este caminho com os olhos bem abertos.
E, já agora, o caminho da Espanha inteira, para entender o que somos e o que não somos. O resultado pode ser uma depressão inicial, porque a Espanha somos nós, mas bastante mais extremados. Lá o calor é mais quente, o frio é mais frio, as alturas mais altas, as planuras mais desoladas, as distâncias mais distantes, os defeitos mais mortíferos e as virtudes mais sublimes.
Olhe-se cá de baixo os cumes nevados da Sierra com 36 graus à sombra, e percebe-se melhor porque há duas Espanhas. Vejam-se os penhascos de Ronda, o desfiladeiro alucinante cavado no meio da cidade onde segundo a lenda se inventaram as touradas, e para onde na guerra civil foram atirados em poucas horas 500 alegados fascistas como que para as goelas do Inferno, e entende-se o resto. Em Portugal não havia onde fazer isso. O determinismo geográfico tem limites, mas ali, na meseta onde todas as coisas são menos temperadas, percebe-se que as pessoas também o sejam.
Ver Córdova e a espantosa mesquita, as rendas de pedra do Alhambra e a vega granadina faz-nos entender que sempre vivemos numa espécie de quintal das traseiras. Mas, à parte isso, faz-nos entender a saudade que corre na memória colectiva do Islão. Foi aqui que ele ergueu o que foi em tempos a sua maior jóia. E as verdes pradarias e colinas prometidas aos mortos de Alá serão estas que se estendem em torno e para lá de Sevilha e do Wad al-Kebir, cravejadas de pueblos brancos teimosamente agarrados às escarpas e à memória de la frontera. Percebe-se porque é que a cor do Islão não é o ocre do deserto, mas o verde que representa as árvores que dão sombra e frutos, a água que retempera, a vida. O al-Andalus é o paraíso não perdido, mas “roubado,” e que ainda hoje bin Laden evoca nas suas arengas de vingança. Nunca secará a lágrima que Boabdil deixou correr ao olhar Granada pela última vez: Llora como una mujer lo que no has sabido defender como un hombre.
Mas uma freira caminhando pelas vielas do bairro de Albaicín como num suk magrebino, ou a catedral cordovesa que nasce e se mistura quase naturalmente na mesquita em volta são odes a um mesmo Deus e um dos mais patentes desafios às trincheiras civilizacionais. Nem o grosseiro palácio que Carlos V (o mais europeu dos imperadores) ergueu junto aos delicados palácios Nasritas como um desajeitado símbolo de poder e conquista consegue destruir o poema.
Talvez sejam, quem sabe, não apenas ecos do passado, mas imagens de futuros possíveis. Aquele não se fez sem sangue, nem certamente estes se farão sem ele. Mas nos jardins do Alhambra há rosas belíssimas.
Dale limosna, mujer
Porque en la vida no hay nada
Como la pena de ser
Ciego en Granada.