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Womenage a Trois

Women's True Banal Stories - womenageatrois@gmail.com

Novembro 28, 2006

Cenas Obscenas

Este vai sem disparates (pelo menos, conscientes e propositados) à mistura. Toda a gente tem os seus momentos mais ou menos sérios e hoje apeteceu-me divergir um bocadinho do tom costumeiro.
Uma das coisas que considero paradigmáticas do nosso estado geral de ignorância, visível, estendida, divulgada e elogiada é a verborreia oca dos comentadores e jornalistas sobre os assuntos de política internacional, que nos são impingidos como "especialistas que sabem do assunto". Andam às voltas mas não vão ao fundo de nada, ficam-se pela rama, pelos aspectos banais e exteriores, pelos fait-divers. Quando enfiam a unha mais fundo metem água. A actual visita do Papa é um bom exemplo, um entre tantos.
O Papa está na Turquia. Tem os holofotes apontados ao nariz e certamente não cometerá outro deslize infeliz de fazer citações indevidas. Se as fizer, alguém que lhe arranje umas aspas bem visíveis. Porque equívocos daqueles são imperdoáveis. Que o George W. Bush cometa a sua gaffezinha diária, está-lhe na fibra. Mas Ratzinger tem muitos defeitos mas não é idiota. Ora, subitamente, os media encheram-se de expectativas e suspense sobre a recepção. O significado de o primeiro-ministro ter ido ao aeroporto, as palavras do Pontífice, etc. Recolhem depoimentos nas ruas e constatam, não sem algum espanto, que os Turcos e as Turcas são gente como nós, falam, sorriem, têm dificuldades, problemas e opiniões. Lá vão buscar o Ataturk e debitam a prosa batida do costume: "o fundador da Turquia moderna", "pai do único país muçulmano laico", etc. Ufa, somos levados a pensar, até que enfim um país muçulmano mais ou menos decente. São muçulmanos mas não são "radicais", "fundamentalistas" ou, pior, "xiitas", ou seja, "maus como as cobras". Não há turbas ululantes nas ruas, barbudos a gritar, encapuçados de metralhadora a desfilar. Um oásis no meio da barbárie, pensamos. No fundo, são modernos e civilizados (ou querem ser) como a gente. Uma democracia, como nos relembram. Pronto, lá têm aquela coisa da religião esquisita (ninguém é perfeito), mas devem ser tão muçulmanos como nós somos católicos, ou seja, de fachada. Se têm um estado democrático e sem barbudos a esbracejar, opá, escapam.
Isto achamos nós todos e a isto somos levados a pensar. Memória curta. Ninguém diz, ninguém relembra uma coisa: este regime "secular" (ou seja, que não tolera os tais mauzões dos barbudos) é um regime com um triste rasto de repressão e um tenebroso registo de violações dos direitos humanos, dominado pelos militares e com gravíssimos problemas com as minorias, entre outras questões. Adivinham porque é que os cristãos são tão poucos? perguntem aos arménios que eles respondem; e perguntem, já agora, aos curdos o que eles acham da democracia turca. Alguém se lembra do "Expresso da Meia Noite"? Eu vi há muitos anos e nunca mais me esqueci. Durante muito tempo, a Turquia foi a ala leste da NATO e isso bastava para tolerar tudo isto. Hoje, o embrulho e o laço faz-se com outras cores: as do "não-fundamentalismo". Um pouco à semelhança da Argélia, acho eu.
É evidente que o país tem feito um esforço notável para poder integrar a UE. Notável. E presumo que vá pelo bom caminho. Mas ainda muito há a fazer. E eu não me esqueço. Não nos devíamos esquecer. E os noticiários, se se preocupassem realmente em informar, prestavam maior atenção a questões de fundo como esta em vez de se agarrarem a merdunfices de pormenor, a balões insuflados de banalidades, a "análises" alienadas.
E agora calo-me que tive um dia cansativo.

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