Fevereiro 28, 2009
Cenas Obscenas
Não me lembro da ocasião, mas tenho a certeza do dia. Foi a 17 de Janeiro. Há um mês e meio. Foi o dia em que o meu cartão da Biblioteca Nacional desapareceu. Ou, pelo menos, o dia em que lhe perdi o rasto. A Biblioteca Nacional, que nos meus tempos de estudante era BNL (sendo o L de Lisboa), perdeu posteriomente a coordenada alfacinha (ficando só BN) e, mais recentemente, ganhou um P patriótico. De Portugal, entenda-se. BNP, Biblioteca Nacional de Portugal. Ainda me causa sorrisos ocasionais, a sigla, porque me evoca memórias dos tempos em que parte dos meus neurónios estava treinadíssimo em siglas, muitas, uns verdadeiros Marines prontos a entrar em acção e a decifrar o mais pequeno desafio que ousasse fazer-lhes frente. Ossos do ofício desse tempo, bem-entendido. BNP era "Biblioteca Nacional de Paris". A nossa era apenas BN. Hoje é um outro mundo, embora o edifício seja o mesmo. Não sou saudosista, muito pelo contrário. Os funcionários mudaram. Alguns mantêm-se. É das bênçãos divinas de que dou graças de cada vez que lá vou: os maus (que eram muitos) desapareceram, os outros, alguns, ainda lá estão. Hoje a simpatia no atendimento é norma geral, a eficácia mínima e a responsabilidade fazem regra. Já não há porteiros e seguranças a tratar alunos universitários como se fossem escória, funcionárias a remeter leitores para coisa nenhuma, esperas infindáveis, labirintos kafkianos de autorizações, responsáveis ausentes, reclamações sem resposta e sem saída. Há menos dinheiro, sim, e regras mais apertadas, e um apertar de cinto geral. Não sei porquê, convivo muito bem com isso.
No dia 17 de Janeiro perdi o meu cartão. Um cartão novinho, de estética muito agradável. Só dei pela falta na semana seguinte, quando lá voltei. Recepção, sala de leitura, sala de referência. "É lá, se foi encontrado está lá", foi o veredicto unânime. Todos os caminhos vão dar à Referência. Aos sábados os funcionários "rodam", por isso, há sempre uma cara nova. Perguntei pelo meu pobre cartão, a funcionária olhou para o balcão, espreitou rapidamente uma gaveta, e o "não, não" implacável surgiu. Durante as semanas seguintes, a rotina foi religiosamente seguida. Um pouco como aquela cena, habitual nos filmes de guerra de outrora, em que a pobre donzela vai verificar as listas de baixas, a ver se o amado lá consta, e suspira de alívio de cada vez que não encontra o nome. O meu caso era um pouco diferente, mas não importa. Semana após semana, a funcionária (sempre diferente) olhava vagamente para cima do balcão, espreitava de relance uma gaveta e dizia "não, não".
Procurei em casa pelo desaparecido. Com resultados decepcionantes e esperados. Era impossível, não podia estar ali, estaria de certeza na Biblioteca. Uma biblioteca enorme, onde um malandro encontra muitos recantos para se esconder. Pior ainda se se tratar de um cartão. Semana a semana, a rotina repetiu-se. Nunca ninguém me negou acesso à sala de leitura. Cheguei a detectar um leve assomo de piedade no rosto dos seguranças. "Coitado, lá vem este outra vez a pedir notícias do cartão", li eu uma vez na cara de um. Na semana passada, finalmente, uma das senhoras da Referência, depois do habitual "não, não" após dar uma vista de olhos pelo balcão e uma espreitadela a uma gaveta, sugeriu-me a hipótese de pedir novo cartão. Rejeitei-a imediatamente, com um sorriso condescendente e um "sim, se calhar, vou esperar mais uns dias". Na verdade, o que eu queria dizer-lhe era "não, como pode dizer uma coisa dessas, ó mulher sem coração, funcionária de alma fria, amanuense de ânimo vazio, que merecia o opróbrio do esquecimento para toda a eternidade?".
Há coisas de novela, enredos que parecem saídos exactamente da pobre imaginação de um argumentista de soap opera. Hoje de manhã, há pouco mais de uma hora, entrei novamente no vetusto edifício, determinado a pedir novo cartão, após um período de nojo pelo defunto. Não foi uma decisão fácil. Mas necessária, assumi. Cartão morto, cartão posto. O cartão desapareceu, viva o cartão. Mas algo me fez vacilar e adiar. Não sei exactamente o quê. Dirigi-me novamente à Referência e em vez do "queria pedir um cartão novo, sff", saiu-me o habitual "podia procurar-me um cartão que devo ter perdido por aqui?". Era uma funcionária que nunca tinha visto naquele balcão. Que, desta vez e inesperadamente, afastou os olhos do monitor, levantou-se e perguntou-me "foi há muito tempo?". Depois procurou e, subitamente, sacou de um molho de dezenas de cartões, que eu nunca vira. Pobres cartões sem dono, esquecidos numa qualquer gaveta, tomados por perdidos pelos respectivos donos, condenados à reciclagem ou ao shredder, fantasmas sem memória nem redenção, subitamente emancipados por uma funcionária mais zelosa e piedosa. Quase que conseguia ouvir os seus uivos de desespero, após semanas de escuridão e de possíveis maus-tratos. "Cartões novos?". "Não, cartões perdidos, alguns estão aqui há meses". E durante alguns minutos foi percorrendo, um a um, a pilha. O meu nome soou, por fim. "É o seu?". Sim, era. Com uns sinais de desgaste, ar cansado e vagamente órfão. Não o reconheci imediatamente. Não tem sequer a minha fotografia, nem está assinado. Apenas um nome no verso, o meu. Era ele, afinal. Foi um reencontro feliz. Não houve lágrimas nem emoções fortes. Apenas a sensação de que sim, agora estava tudo bem.
Adenda musical (a pedido e dedicada à Helena Velho):