Janeiro 31, 2009
Shyznogud
... devo voltar para comentar estas sentenças judiciais. Até lá apreciem-nas porque levantam questões interessantes .
"Aactividade que exerci na Argélia foi pelo meu país, acreditando estar a proceder bem, mesmo se não gostei de o fazer. Não nos devemos arrepender daquilo que fizemos convictos de que estávamos a cumprir o nosso dever", afirmava o general Paul Aussaresses na introdução ao seu livro Services Speciaux Algérie 1955-1957 publicado em 2001, em França.
Neste livro, o general Aussaresses rompia o voto de silêncio de muitos dos seus camaradas que combateram na Argélia e decidia, 40 anos depois, dar o seu testemunho público "sobre factos graves relativos aos métodos utilizados para combater o terrorismo, nomeadamente o recurso à tortura e às execuções sumárias".
No livro, o general Aussaresses relatava, com frieza, as operações em que estivera envolvido na guerra da Argélia, afirmando, por exemplo: "De uma coisa não há dúvidas: a nossa missão impunha-nos resultados que passavam muitas vezes pela tortura e pelas execuções sumárias." Ou: "Havia urgência e eu tinha nas minhas mãos um homem directamente implicado num acto terrorista: todos os meios eram bons para o fazer falar. Eram as circunstâncias que o ditavam." Referindo-se a militantes independentistas que tinham sido presos e posteriormente executados, o general afirmava: "Era impossível metê-los no circuito judiciário. Eram demasiados e as rodas da máquina judiciária teriam gripado. Muitos deles teriam passado pelas malhas da rede." Ou ainda: "As execuções sumárias faziam parte integrante das tarefas inevitáveis de manutenção da ordem. Era para isso que os militares tinham sido chamados. Tinha-se instaurado o contraterror, mas oficiosamente, claro."
O escândalo em França foi enorme e o general Aussaresses foi destituído do seu posto e proibido de usar o uniforme militar, sendo-lhe mesmo retirada a Legião de Honra. A Liga dos Direitos do Homem, o Movimento contra o Racismo e pela Amizade dos Povos e a Associação dos Cristãos pela Abolição da Tortura queixaram-se criminalmente contra o general e as Editions Plon, acusando-os da prática do crime de apologia da guerra. E o general e os editores tiveram de responder criminalmente.
Foram condenados, tanto pela 1.ª instância como pelo tribunal de recurso de Paris, pela prática do crime de apologia da guerra, já que no livro a tortura e as execuções sumárias eram apresentadas como "legítimas" e "inevitáveis" tendo em conta as circunstâncias, nomeadamente a necessidade de obter informações, de eliminar os independentistas e de criar um ambiente de contraterror destinado a intimidar o adversário. O general foi condenado numa multa de 7500 euros e os editores, por não se terem demarcado da obra publicada, numa multa de 15.000 euros cada um, para além da condenação no pagamento de um euro a cada uma das associações que se tinham queixado e ainda nas despesas judiciais destas no montante de 2500 euros.
Os editores não gostaram da condenação e, em 2 de Junho de 2005, queixaram-se ao Tribunal Europeu dos Direitos do Homem (TEDH), alegando que a França tinha violado a liberdade de expressão consagrada na Convenção Europeia dos Direitos do Homem (CEDH).
No TEDH, a França alegou que a queixa era um abuso de direito, já que o livro continha em si termos que visavam abolir ou restringir os direitos consagrados na Convenção, sublinhando que os tribunais não tinham condenado a publicação de informações sobre a guerra da Argélia e a utilização da tortura ou as execuções sumárias, sendo a censura penal dirigida apenas a determinadas frases e expressões que defendiam e legitimavam o recurso a tais crimes de guerra. Segundo o Governo francês, a condenação justificava-se pela necessidade de "defender a ordem e evitar o crime", razão prevista na CEDH para os Estados poderem restringir a liberdade de expressão. Os queixosos, pelo seu lado, defenderam que ao publicarem as memórias de um oficial general veterano da guerra da Argélia estavam a cumprir o seu dever de informar os leitores sobre um assunto de interesse geral, sendo certo que a obra não tinha um carácter apologético da tortura ou das execuções sumárias.
O TEDH começou por refutar a existência do abuso de direito invocado pelo Governo francês. É certo que em anteriores decisões, nomeadamente no caso de uma obra que punha em causa de maneira sistemática os crimes contra a humanidade cometidos pelos nazis em relação aos judeus, o TEDH não tinha aceite a queixa por considerar que a obra tinha um carácter e um objectivo marcadamente negacionista, contrariando os valores fundamentais da CEDH: a justiça e a paz.
Mas, no caso da obra do general Aussaresses, o TEDH não conseguiu descortinar tal objectivo. Para o TEDH, o livro era essencialmente um testemunho de um antigo oficial dos serviços especiais franceses destacado para a Argélia, um "actor central do conflito" directamente implicado na prática da tortura e das execuções sumárias. E para o TEDH, o facto de o general Aussaresses não se ter distanciado dessas "práticas atrozes" e de, em vez de exprimir arrependimento, ter afirmado que agira no quadro da missão que lhe fora confiada, cumprindo o seu dever, mais não era do que uma componente desse mesmo testemunho, pelo que não cabia aos editores distanciarem-se do depoimento do autor.
Considerou, assim, o TEDH, no seu acórdão do passado dia 15, que a condenação dos editores não era necessária numa sociedade democrática, pelo que a liberdade de expressão fora violada. E, assim, condenou a França a indemnizar os editores na quantia de um euro pelos danos morais e na quantia de 33.041 euros pelos prejuízos tidos com o pagamento das multas e custas judiciais, lembrando, assim, que apesar de a tortura ser sinistra, a censura não é aceitável.
Francisco Teixeira da Mota no Público de hoje