Não tardará muito que o tema do costume, leia-se IVG, tome conta dos palcos mediáticos com o habitual chorrilho de disparates. Disparates que vêm, aliàs, dos dois lados da barricada (escolhi conscientemente a palavra barricada). Como feroz partidária da despenalização e liberalização do aborto (dentro de prazos sensatos) custa-me muito mais, claro, ouvir disparates ditos pelo lado dos partidários à alteração legislativa. O principal, aquele que me revolve as entranhas, é o que assenta no discurso da "desgraçadinha, coitadinha, que não tem com que dar de comer aos filhos que já tem e a quem não resta outra saída que não meter-se nas mãos das parteironas de vão de escada, essas vis criaturas". E porque é q isto me dá volta ao estômago? Em primeiro lugar porque o aborto não é, nem nunca foi, um problema específico de "pobrezinhas". Penso, aliás, que a maioria das mulheres que já abortou deve pertencer aquilo que se chama classe-média. A maternidade/paternidade é um projecto de vida, a longa distância que já nos separa da "natureza" permite, felizmente, que não procriemos apenas para perpetuar a espécie. Não concebo a maternidade (e só falo dela porque estou a falar em nome próprio) sem um profundo investimento nas "crias" que se têm. Esse investimento não passa só por fornecer alimento às criancinhas, é muito mais do que isso, e exige uma disponibilidade mental que não se tem em todas as alturas da vida. "Shit happens", como dizem os anglófilos... e sim, gravidezes indesejadas acontecem por motivos vários. Felizmente não somos autómatos e, feliz ou infelizmente, o corpo humano tem falhas. Uma simples diarreia pode tornar ineficaz a toma da pílula. Mas, mais do que isso, quem nunca teve uma relação sexual "potencialmente reprodutível"? Não acredito que haja quem responda "Eu não!" a esta pergunta se estiver a ser absolutamente sincero. Por muito racionais que sejamos há momentos em que a desgraçada da razão, tadita, leva um senhor tareão e desaparece durante um bocado. Estou a fazer a apologia do sexo não protegido? Claro que não, estou a limitar-me a constatar que, por vezes, falhamos. Acontece... Quer seja por motivos fisiológicos, quer seja por "calores", todos nós , uma vez na vida, tivemos um deslize, um momento, que pode resultar numa gravidez. Posso parecer pedante mas parece-me que é por achar que um filho é algo demasiado valioso, demasiado importante que defendo que casos há em que a IVG faz todo o sentido. Como referi antes neste blog já abortei. Se me arrependo? não, de todo. Naquele momento da minha vida foi a decisão que me pareceu certa e fi-lo. De ânimo leve? Não, claro que não. Ponderei muito bem todas as "variáveis" e, no fim desse processo, não hesitei. Sofro por causa da minha decisão? Não, não sofro, não tenho nenhum sentimento de culpa a pairar sobre a minha existência. Se me visse de novo na mesma situação faria o mesmo? Muito provavelmente, ter mais filhos não faz parte do meu projecto de vida para o futuro. A maternidade é algo muito presente na minha vida, a que dou uma importância fulcral, tenho-me por uma mãe muito presente na vida dos meus dois filhos mas chegam-me os que tive/tenho. Ter filhos pequenos fez sentido em certos momentos da minha vida, agora, que começam a voar sozinhos, não faz. Até porque não reduzo a minha condição de mulher ao papel de mãe.
Grande conversa que para aqui vai e não era propriamente isto que eu me propunha a escrever quando abri a página do blogger. Ia, pensava eu, fazer uma viagem até 1998, à noite em que os resultados do Referendo ao Aborto foram conhecidos. "Que se fodam as mulheres do meu país", este era o meu espírito nessa noite. Eu, burguesinha que sou, tinha (e tenho) todas as condições para fazer uma interrupção voluntária de gravidez onde e quando quiser. Não era a mim que aquele resultado penalizava em primeiro lugar. Ou melhor, penalizava-me sim, porque no meu país continuava a vigorar uma legislação que me impunha comportamentos (mas a isso já lá vamos). Fiquei irritada, profundamente irritada com a preguiça demonstrada por uma enorme percentagem de portugueses. É verdade que a cidadania e o exercer dos seus direitos e deveres é coisa que ainda tem um longo caminho a percorrer neste canto, mas, bolas, no mínimo exigia-se que quem já tivesse passado por uma situação semelhante abandonasse a praia um bocadinho mais cedo e fosse votar. Eu não conheço só depravadas (ok, concedo, conhecerei algumas ) nem inconscientes e das mulheres que conheço (todas as idades confundidas) se há 20% que nunca tenha feito nenhum aborto é muito. Claro que também há gente, como uma senhora que acompanhou a filha a uma parteira no dia seguinte, que proclamava alto e bom som ter votado Não. "Votou não?? e hoje está aqui a fazer uma interupção com a sua filha?", "Mas a minha filha é um caso diferente, foi um acidente"... ah! pois, as nossas filhas são sempre diferentes das outras, essas putas ou ignorantes, que fornicam inconscientemente e que por isso merecem ser "castigadas" com um filho.
Hei-de voltar ao tema, agora vou terminar com algo que sempre me intrigou. Alguns blogs lusos têm mantido, nos últimos tempo, debates sobre o assunto. É o caso do
Blasfémias e do blog da
Revista Atlântico. Neste último encontrei uma pérola que me deixou de olhos arregalados (ainda hei-de ficar cheia de rugas de expressão tantas são as vezes que os meus olhos se abrem de espanto). Paulo Pinto de Mascarenhas, um dos redactores do blog, é dos tais que diz que vai votar não à alteração da lei mas que não defende que as mulheres sejam penalizadas. Como é que disse? ora porra, se existe uma lei é para ser cumprida... não? mas não foi esta afirmação, incoerente mas, infelizmente, banal, a responsável pelo aumento das marcas do tempo na minha cara, mas sim o q se segue. Numa
caixa de comentários replica a uma comentadora, que fala das penalizações à mulher que aborta e à ausência de penalização ao homemque que forneceu os espermatozóides,
"Tem toda a razão Maria Antónia, se a posso tratar assim. A penalizar, para mim, devia ser o homem.". Confesso, não resisti a rir perante tamanho paternalismo e menorização da mulher ( a desgraçada, coitadinha, que, incauta, é engravidada pelo malandro do macho abusador?dá ou não vontade de rir?). Este mote poderia servir para muitas outras coisas, inclusivamente para a questão inevitável: o homem deve ou não ter uma palavra a dizer sobre a decisão de interromper uma gravidez. Fica prometido para outros post que surgirão, tenho a certeza.
Ah! Antes de me despedir só mais uma coisinha. Este blog surgiu, tembém, por causa de uma conversa mantida na caixa de comentários do Escola de Lavores. Faço esta referência devido às
"parteironas, essas vis criaturas" que referi no início.